Nas masmorras, entre grades e as escabioses,
tuberculoses e abandono, prisioneiros somam
 em suas marcas o estigma de explodir essa cidade,
 e morrem encarcerados sem nenhum protesto. 
 Hamilton Borges Walê,
em “Fragmentos de uma 
Teoria Geral do Fracasso”[1].

Feira de Santana é uma cidade quente e encharcada de sangue negro, uma cidadela do racismo apelidada como Princesinha por uma aristocracia falida branco-sertanejo. Nessa terra hostil, os negros são caçados, capturados e abatidos como cães. O delito é o mesmo de 127 anos atrás: a cor da pele, o tamanho do nariz, os deuses que honrosamente e humildemente carregamos em nosso Orí. Toda essa violência racial acumulada do mundo escravagista transfigurou-se nesse grande purgatório neocolonial, em que segregação racial urbana, altas taxas de homicídio contra jovens negros, brutalidade policial endêmica e um dos maiores índices de mortes por “negligência” hospitalar do Brasil tornam Feira de Santana peça chave no processo de interiorização do Genocídio Negro.
É nesse cenário de rebelião racial e massacre que está instalado o Conjunto Penal Regional de Feira de Santana, que no último domingo (24/05/2015) entrou para história recente dos massacres no Brasil, depois de ser a arena de uma rebelião que terminou com dez detentos mortos[2] e cinco feridos gravemente[3]. Uma matança sem precedentes nos últimos 20 anos do sistema penitenciário baiano.
 Como todo presídio no Brasil e no mundo, o conjunto penal de Feira de Santana é uma bomba relógio com explosão programada pelo Estado. Com capacidade para abrigar 600 internos, tem quase 2 mil. Só no pavilhão X, 638  internos ocupam 38 celas, em condições sub-humanas de alojamento, higiene e alimentação. Atrele todos esses ingredientes à índole sádica do governador Rui Costa e da cúpula da secretaria de segurança pública da Bahia, que mantém no mesmo bloco dois grupos de presos historicamente rivais, armando-os com revólveres, pistolas e facões: temos um massacre fratricida orquestrado com precisão cirúrgica lynchiniana.
A desgraça coletiva do conjunto penal regional de Feira de Santana não é uma situação excepcional, mas sim um fragmento de uma realidade nacional. Segundo dados sub-notificados do Sistema de Informação Penitenciaria (2011), o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, com cerca de 600 mil detentos\as. A cada 100 mil brasileiros 288 estão encarcerados, sendo que 70% desses detentos foram detidos por crimes contra o patrimônio e porte de entorpecentes. A massa carcerária tem cor, endereço e escolaridade. Mais de 70% da população intramuros é constituída de negros/as. Em sua maioria quase absoluta não possuem nem mesmo o ensino médio. Um dado particularmente alarmante é que mais de 70% são presos de caráter provisório, ou seja, não foram nem mesmo julgados pelo sistema judiciário.
Em 10 anos de luta organizada Contra o Genocídio Negro estivemos atuantes em penitenciárias da Bahia que nunca receberam a presença ilustre de um Secretário de Segurança Pública ou Governador. Nós conhecemos as entranhas e submundo pulsante do sistema prisional baiano. Já passamos por rebeliões, motins, greves de fome, protestos silenciosos, sabotagens. Paralisamos ruas e avenidas em frente de penitenciárias exigindo o fim dos dispositivos de controle racial, leia-se: Revista Vexatória e o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD)[4].  Entretanto, foi nesse território de constante repressão e violência racial que construímos uma de nossas mais poderosas células organizativas: a Associação de Familiares de Amigos/as de Presos/as da Bahia (ASFAP), um núcleo de base coordenado e liderado hegemonicamente por mulheres negras que há anos tem defendido o postulado político do abolicionismo penal, não em seminários pomposos com “ativistas” afro-intelectuais de meia pataca, mas sim, no interior do sistema penitenciário baiano, forjando e formulando nossa Plataforma Insurrecional Intramuros. Se todo detento negro é um preso político, o seu direito de livre organização tem que ser defendido.
Nesse contexto não é de nenhum alarde que nossa organização é irrestritamente solidária aos familiares dos presos assassinados no Massacre no Pavilhão X.  Também cabe ser declarado que nos solidarizamos com os presos, familiares e amigos que passaram momentos de terrorismo racial durante a rebelião, com a ameaça constante da SSP-BA soltar seus cães raivosos fardados contra os detentos amotinados, que foram acusados e julgados pela mídia de rapina como sequestradores. Quem conhece a cultura política carcerária sabe que não houve sequestro de parentes. Os familiares permaneceram dentro da casa correcional como estratégia comunitária de autodefesa para frear uma investida da polícia militar, que não tinha o mínimo interesse em  negociar uma “rendição”, mas sim, executar o máximo possível de detentos e depois colocar na conta das “facções”.
O massacre no pavilhão X, com cabeças decapitadas, lençol no telhado com o CNPJ da firma e armamento de alto calibre, que, como é obvio, não entrou na grade pela genitália de uma mulher, evidencia bem mais do que os discursos morais religiosos e a Tese dos “Bons e maus meninos”, vomitados pelas redes sociais e mídia de rapina.  Diante de um padrão de governabilidade alicerçado na morte de negros\as, em que, apenas na gestão do Secretário de Segurança Pública Maurício Telles Barbosa, 25 mil  pessoas foram assassinadas, em média 15 homicídios por dia[5], sem contar as mais de 17 chacinas que vieram a público, como é o caso da Matança do Cabula.  Esses números, que como sabemos são sub-notificados, não dão conta da dimensão real do Genocídio de Negros na Bahia, mas nos traz indícios para entender que o massacre na penitenciária estadual de Feira de Santana é uma peça nessa engenharia estatal da morte Negra, em que o Estado é o responsável direto, como dissemos anteriormente, essas armas não entraram na carceragem pela genitália de uma mulher.
Feira de Santana continua sendo uma cidade colonial incendiada secularmente por rebeliões e massacres.  Cabe retomarmos que foi nesse território hostil aos negros\as que viveu e morreu Lucas Evangelista dos Santos, o Lucas da Feira, como ficou mundialmente conhecido. Um homem preto revoltado, desobediente, indigesto, brigão, mandão, violento, cruel, vida loka, contraditório. Não estamos falando de banditismo social, cangaço urbano ou de símbolo da luta por “Promoção da Igualdade Racial”. Lucas da Feira era gente ruim mesmo, periculoso, um menino mau.  Talvez por esses motivos, ou tão somente, no ano de 1828 pinotou da fazenda de seu antigo Senhor. Na fuga e pistoleiragem trombou com outros pretos/as revoltados e juntos lideraram por cerca de vinte anos uma rebelião racial permanente que levou o terror à aristocracia falida sertaneja. Até mesmo o Governador da Província da Bahia na época cabrerou e estipulou um prêmio de quatro mil reis pela captura e morte do Bando.
 Lucas da Feira foi capturado, aprisionado, executado e esquartejado em praça pública em 25 de setembro de 1849. Um criminoso que cometeu o delito de conquistar sua liberdade no cano de uma espingarda, no corte do facão, na marra, com violência e sem concessões. A rebelião e massacre no pavilhão X não pode ser deslocada dessa história de luta radical negra.

31 de maio de 2015

Professor Fred Aganju, articulador da Campanha Reaja ou Será Morta/o


TODO DETENTO/A NEGRO/A É UM PRESO POLÍTICO. COMO TAL, TEM DIREITO A LIVRE ORGANIZAÇÃO, SEM RESSALVAS.


[1] Ver na íntegra em: bit.ly/1I2UXnZ   
[2] Os detentos assassinados foram Silas da Silva, decapitado, residia no bairro Rocinha; Haroldo de Jesus Brito, da Rua Nova; Alisson Rodrigues Oliveira, do Conjunto Feira VII; Juliel Pereira dos Santos, do George Américo; Israel de Jesus Santos; Luiz Paulo de Souza Alencar; além do detento identificado apenas como Júnior.
[3] Os detentos feridos foram Dioclécio Aureliano dos Santos, Davi Pires Almeida Fernandes, Anderson Clayton Silva Nascimento, Iago de Jesus dos Santos e Luiz dos Santos Almeida.
[4] Isolamento total do detento, com apenas duas horas de banho de sol por semana, privação de sono, tortura física e psicológica, além da proibição de qualquer tipo de visita. O mesmo tratamento dado a “terroristas” por parte dos EUA na base naval de Guantánamo.
[5] Esses dados foram divulgados recentemente pela mídia e notificados a partir do cruzamento de dados usando informações do DataSUS, Mapa da Violência, Anuário da Segurança Pública, e os próprios boletins da Secretaria de Segurança Pública. Ver em: bit.ly/1BchCJs